Brevíssima leitura de
MVC
Por altura da morte de Agustina
Bessa-Luís (03-06-2019), escrevi um texto sobre brevíssimos aspectos da sua
obra, na medida em que, como então disse, tratando-se da minha autora de
cabeceira, há muito a lia, estudava e aspirava mesmo a desenvolver uma tese que
me parecia inovadora.
Tratava-se de uma morte anunciada e
as palavras saíram facilmente.
Não disse, então, o que me parecia
indecoroso, que sempre a tinha colocado como a grande autora do século XX que
se opunha a outra tão grande quanto ela, Maria Velho da Costa e que, mais do
que na cabeceira, residia dentro de mim. Porque desta eu conhecia toda a obra
que fui lendo à medida que ia sendo publicada. Era, apesar de duas décadas de
distância entre nós, uma companheira, irmã que eu venerava desde que, em 1976,
tinha ficado presa no “Cravo”. Consegui facilmente os livros anteriores, desde
“O Lugar Comum”e depois tornei-me viciada.
Por isso, agora, que Maria Velho da
Costa morreu inesperadamente, em 23 de Maio de 2020, eu não tive a mais pequena
vontade de arrebanhar meia dúzia de palavras para a homenagear, só porque sim,
só porque poderia ficar bem. Não. Também eu não sou muito de palavreados. E no
entanto, desde esse dia de Maio não parei de a reler, não parei de a pensar e
de ouvir as algumas coisas interessantes que alguns, poucos, sobre a sua obra
foram dizendo/escrevendo. E insidiosamente foi-se impondo o desejo de escrever,
sendo eu uma simples leitora apaixonada e sem um pingo de aspirações a ter
saída no mercado. Em qualquer mercado. Mas escrever será uma forma de assumir,
enfim, que a escritora Maria Velho da Costa está viva em mim. Faltará depois (o
que não é pouco) que quem de direito a coloque no cânone literário português da
segunda metade do século XX, no lugar ao lado de Agustina, por razões bem
diversas, que importará deslindar e de que quero deixar desde já um indicador:
onde Agustina é personagem única da sua obra, autora de um único livro que vai
reescrevendo ao longo de uma vida, numa linguagem e língua únicas, Maria Velho
da Costa é a voz plural de personagens várias, de histórias várias e linguagens
e línguas várias. Maria Velho da Costa arrancou Portugal da visão única,
branca, privilegiada, para lhe dar a mestiçagem que vai de Luís de Camões a
João Guimarães Rosa. Grandeza imensa para país tão pequeno!
Maria Velho da Costa poderá não ser
considerada como “escritor de linguagem”, segundo as suas próprias palavras no
documentário “Fátima de A a Z”, de Margarida Gil, pois a linguagem está intimamente
ligada às histórias e personagens o que constrói uma obra polifónica (já muito
dito, mas certo) e
inteira. No sentido da plenitude que advém de uma imbricação entre o que usa
chamar-se de forma e conteúdo, fazendo que uma e outro se dependam entre si. Ao
(re)inventar a palavra, ao fazer renascer/reviver uma língua, Maria Velho da
Costa conta-nos histórias e fala de personagens que são também renovadas, que
nos obrigam a ler em português, como se fosse a vez primeira, o que equivale a
também olhar o país, a cidade que ela assume como sua, pela primeira vez. E
esta primeira vez traz a novidade, ó quanto revolucionária!, de ser diferente
porque plural, porque mestiça, porque muito chã e em diálogo constante com além
fronteiras. Maria Velho da Costa deixa-nos, pois, à disposição uma Weltanschauung que ainda não foi
possível (virá a ser?) usufruir.
A autora desdobra-se, descentra-se
nas histórias e personagens, seguindo-lhes os passos, atenta aos seus
linguajares, conseguindo, no entanto, ter a sua voz, como diz Ana Luísa Amaral,
bem distinta e identificável, num trabalho de funâmbulo que aos leitores obriga
a exercitarem-se numa arte de bem cavalgar toda a sua escrita, pois o exercício
constante de construção e desconstrução desde a frase até à narrativa não são
propícios a leituras de lazer. Essa é afinal a característica dos que ficam
para a história, muito para além de nós. E Maria de Fátima Bivar Velho da Costa
ficará, malgré tout et tous.