quarta-feira, 27 de dezembro de 2017




esvaziar uma casa
ou esvaziar uma vida
faz-se tão
meticulosamente como
uma gota de chuva
que cai sobre
a folha
branca.

terça-feira, 26 de dezembro de 2017




aprender a carregar
a mediocridade
seca os olhos
arrefece o coração
limita o horizonte

a respiração vai-se esbatendo
à espera do
esquecimento.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017




apoucam-se as palavras
diante da orgia festiva
de natais obscenamente
histriónicos
embora led e solidários
para garantir consciências
sossegadas estranhas a bombas
na mão de loucos à solta
a fomes e secas a intifadas renascentes
a precários crescentes
a um planeta sem crédito

importa-se da china sem direitos humanos
conversa-se com putin czar das rússias
aplaude-se a europa moribunda
perdida entre a pulsão contestatária
e a saudade de uma ordem gaulista
dança-se com erdogan ao sabor
dos refugiados


quanto ao resto do mundo
mal existe além
dos meninos cobertos de moscas
dos ursos famintos
das ruínas humanas construídas por assad
do mediterrâneo feito esquife

apoucam-se as palavras
cresce o silêncio
branqueiam-se
as páginas
com um solo de jazz
a embalar-me o estupor.

sábado, 9 de dezembro de 2017




confesso o olhar para longe
a preferência por ideias e ideais
o vestuário de valores
confesso a solidão escolhida
o silêncio sacralizado
a comunhão com a natureza

confesso o coração frágil
o resguardo dos sentimentos
os olhos esquivos de outros olhos
confesso o medo do amor
a espécie de falta de jeito
para oferecer e receber
o que tenho de mais valioso
que me passou ao lado
e deixei escapar
por entre os dedos.

sábado, 2 de dezembro de 2017




a distância deste mundo
vai progredindo
aos meus olhos até
se perder na poeira do uni
verso.


sexta-feira, 24 de novembro de 2017




tenho as palavras
a dormir enroscadas
no meu colo:
é reconfortante
acariciá-las
sem qualquer utilidade

segunda-feira, 13 de novembro de 2017




todos muito sozinhos
e com pena de si
todos falam de umbigos
e se olham ao espelho
todos têm bons sentimentos
cantam o amor romântico
escrevem frases inclusivas
cultivam amizades virtuais

todos sobrevivem ao nível do mar
e estão encarcerados por
montanhas de contrariedades
que vistas do céu
são apenas
um grão
de areia

perdoai-lhes
senhor
que não sabem
ver mais além.

quarta-feira, 8 de novembro de 2017



afinal
foi sempre de ti
que falei ainda
te não conhecia
foi sempre a ti
que chamei quando
os comboios me atravessavam
o corpo ou os olhos
foi sempre a ti
que encostei
os suspiros e a ti
que sussurrei
os mais íntimos
segredos

afinal foi sempre a ti
que amei
e é sempre a ti
que amarei
até ao fim.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017




adensa-se o peso do tempo
em cima dos ombros rasga-se
o escapulário de músculos
olhos braços atados
acima da cabeça
e o corpo fustigado
pela tempestade gélida

uma vida empalada
apenas à espera
do salto mortal

sábado, 28 de outubro de 2017




rumar a norte até onde
a chuva abunde
poder enfim
respirar o horizonte
voltar a sentir o
cheiro da terra molhada.

pequeno desejo de viver.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017






(ouvindo Keith Jarrett)


a chuva percorre os ouvidos
enquanto o piano
se adelgaça pelas mãos
uma espécie de sossego berço
da fadiga quotidiana
os olhos fechados atentos
à batida de sonhos
perdidos na relva amarelecida
por tanta secura

é uma água de outono
é um outono de vida
é uma vida de silêncios
é um silêncio de vidro.

quinta-feira, 19 de outubro de 2017




gastar as memórias
em papéis rasgados
acumular resíduos e lágrimas
ou risos e paixões
em sacos rotos
que ficam abandonados às
aves sem qualquer préstimo
é um hábito facilmente
perdido
com a passagem do tempo.

basta o corpo a enrugar-se
até já não aguentar
o próprio
peso.

quinta-feira, 28 de setembro de 2017




tocar as palavras com os dedos
os olhos fechados a perceber
se são de linho ou algodão
cheirá-las como relva
molhada nos primeiros
dias de outono ou terra

tocar o chão com o corpo
despido
de inocência

sexta-feira, 22 de setembro de 2017




estilhaços de vidro
colados ao corpo irreparável
a espetarem em punctum
o coração que afinal palpita
os olhos baços de
nevoeiro pegajoso
não distinguem já
a sombra dos laços
e os anéis que se foram
deixaram dedos artríticos
a tolherem-se nos vasos
como pétalas mortas:

já é curto o caminho
que se avista e mutilado
o desejo do fogo.

quinta-feira, 14 de setembro de 2017




passou o tempo da flor
não há relva verdejante
nem sorrisos distribuídos nas esquinas
da cidade que escurece
pardacenta e húmida
pelas encostas dos teus olhos.

há um deserto de linguagem verbal
a cobrir as calçadas
gente despida de futuro
a cambalear pelas ruas
música atónica
a vegetar pelos jardins.

aguardemos inquietos
o dia final.

domingo, 10 de setembro de 2017




entre vestígios do cheiro
a sabão amarelo
e um qualquer topo de gama
que não terei
ficava bem dizer que prefiro
as madalenas de proust
mas acabei de espetar a agulha
no indicador e isso
prenuncia um silêncio
ensurdecedor

quinta-feira, 7 de setembro de 2017



a acumulação do
desperdício
entre o nascimento e a morte
transforma a vida
numa dádiva explosiva
que legamos ao futuro

no fim
não haverá ninguém para contar
como foi

quarta-feira, 6 de setembro de 2017




já não sabe a morangos
o encontro de gente que
fez parte de círculos
viciados no espectáculo
da moderna
idade

prefiro uma casca de lima.

sábado, 2 de setembro de 2017




tropeça cai passam-lhe
uma rasteira e cai de novo
a crescer e a cair se faz um caminho
que eu queria debruado
a pétalas    sem escolhos
vai fermosa e não segura

mas um dia a fermosura
romperá barreiras e vai
florescer serenamente
contra ventos e marés.

sexta-feira, 1 de setembro de 2017




o ritmo de kronos acelera
para além do que
distinguem os meus olhos
os dias com menos horas
os meses com menos dias
os anos com menos meses
e depois as décadas e os séculos
e as gentes sem poderem contar

pelo caminho ficam destroços
de vidas diferentes todas
iguais em ossadas minúsculas
num planeta azul que há-
de esgotar-se

quinta-feira, 17 de agosto de 2017



encurtam-se os dias e
o corpo a e vista também
já se encurtou a casa
encurta-se o mundo

depois do último
grão de areia
nada fica sobre a praia

sábado, 12 de agosto de 2017



troquei as palavras por tecidos e
a agulha fugiu-me de uma frase subordi
nada para um pesponto
interrogativo.

acabei por coser um texto
original com fecho
éclair.

sexta-feira, 11 de agosto de 2017



esgotou-se o tempo do sonho
ficou um bairro abandonado
onde nem os gatos encontram
telhados para vadiar.

sábado, 5 de agosto de 2017

sábado, 22 de julho de 2017



uma gata e um livro
preenchem a casa
em ruínas.

as chaves ficaram
do lado de fora da janela.

sábado, 24 de junho de 2017



Tu disseste:
- Eu e tu, tu e eu...
Eu disse:
- Nós.
E desenhei-te o rosto com o dedo
número dois.
imperceptivelmente.

terça-feira, 23 de maio de 2017



já são raras as hipóteses
de facadas no coração
pelo contrário
o vazio não se preenche

há horas em que os gestos
falham e as palavras escoam
embora os ponteiros do relógio
avancem inexoravel
mente.

sexta-feira, 28 de abril de 2017



meticulosamente esvaziar
a casa as paredes as janelas
dos traços impressos anos
a fio

não deixar um rasto
da passagem

domingo, 23 de abril de 2017



sessenta anos para
arrasar as palavras
todas pegajosas à pele

uma espécie de libertação